Garantir fundo eleitoral para negros é o mínimo para democracia racial
Quarenta e três anos após a provocação de Abdias do Nascimento, a democracia racial volta para o centro da pauta. Nesta terça-feira (25), o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) aprovou o financiamento proporcional entre candidaturas negras e brancas. Isso significa que o dinheiro do Fundo Partidário – que é a verba destinada à manutenção de partidos políticos brasileiros – e o dinheiro do Fundo Eleitoral – aporte financeiro voltado às campanhas eleitorais – deverá ser distribuído atendendo ao percentual étnico das candidaturas. Juntos, os dois fundos somam mais de 2 bilhões de reais.
Nas últimas eleições, os homens brancos foram amplamente financiados em suas campanhas, em prejuízo às candidaturas negras, que receberam menos recursos [1]. Em 2018, homens brancos representaram cerca de 40% das candidaturas à deputado federal e somaram mais de 60% dos recursos totais arrecadados em campanha para este cargo. Neste mesmo ano, os homens negros receberam a parcela mais desproporcional de recursos: apesar de serem mais de 26% das candidaturas, obtiveram apenas 17% dos recursos totais disponíveis para o mesmo cargo. Esse cenário evidencia a desigualdade racial na distribuição de recursos eleitorais pelos partidos políticos.
A medida do TSE, que vale a partir de 2022, surge como uma resposta ao questionamento da Deputada Federal Benedita da Silva (PT-RJ) sobre a concentração de recursos eleitorais por candidaturas de homens brancos. Vai ao encontro dos esforços empreendidos pelos movimentos sociais para inclusão dos negros na política institucional. Algo similar aconteceu em relação às candidaturas femininas: em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a proporcionalidade entre o percentual de candidaturas femininas e os recursos aplicados. Essa medida foi uma tentativa de tratar a ineficiência da política de cotas femininas nos partidos brasileiros, cuja regulamentação ocorreu em 2009.
Mulheres e negros possuem uma grande dificuldade de ingresso na política institucional, mas os desafios enfrentados por esses subgrupos não são os mesmos. Mesmo sem efetividade, as cotas femininas vêm sendo discutidas pelo Poder Público no Brasil desde 1995 e uma robusta bibliografia acadêmica aponta o subfinanciamento de candidaturas femininas como o principal obstáculo das eleições.
A discussão racial, por sua vez, ocorre no âmbito institucional anos depois: apenas em 2014 o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passou a coletar autodeclaração racial das candidaturas brasileiras. Ainda sim, o subfinanciamento de candidaturas negras é comprovado por diversos estudos, como por exemplo os trabalhos do Prof. Dr. Luiz Augusto Campos (IESP-UERJ).
A medida que torna proporcional o financiamento de campanhas entre negros e brancos é positiva, mas não há garantia de efetividade por alguns motivos. Em primeiro lugar, a garantia na proporcionalidade de recursos precisa estar acompanhada pelo estabelecimento de um percentual mínimo de candidaturas. Hoje, existem cotas nos partidos políticos apenas para mulheres. Isso significa que partidos políticos como o NOVO, que já apresentam pouquíssimas candidaturas negras, poderão continuar com essa prática sem qualquer prejuízo. Em segundo lugar, ainda que o financiamento eleitoral propulsione candidaturas, existem outros elementos sociais – como indicações e experiência política prévia – que afetam diretamente a competitividade das candidaturas dentro dos próprios partidos políticos. Por fim, a medida não faz nenhuma menção à população indígena – que segue invisibilizada na política institucional brasileira.
A identidade, por si só não define orientação política. Existem pessoas negras na direita, na esquerda e no centro. É importante lembrar que a consulta original proposta por Benedita Silva propunha que a distribuição do fundo partidário espelhasse a configuração da população brasileira. Muito mais do que um super avanço progressista, essa medida estabelece padrões mínimos para que o dinheiro seja repartido proporcionalmente entre candidatos brancos e negros. É o mínimo necessário para falarmos em uma democracia racial, não acha?
[1] Chaves, B.M. Mancuso, W.P. Raça e Gênero nas Eleições Brasileiras: uma análise sobre a influência de marcadores sociais na disputa à Câmara dos Deputados e Assembleias Legislativas em 2018. São Paulo, 2020, São Paulo, (no prelo)
*Este texto foi escrito em conjunto com Beatriz Mendes Chaves, recém-graduada em Gestão de Políticas Públicas pela USP e que tem se dedicado a estudar o processo eleitoral brasileiro com foco no financiamento eleitoral de candidaturas femininas e negras.
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